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Volta ao passado para saborear o presente

BRASIL - Um passeio pelo Tocantins: partilhando a esperança

François Glory

quarta-feira 9 de setembro de 2009, postado por Dial

Todas as versões desta matéria: [français] [Português do Brasil]

Histórico

Em novembro 1983, quando era pároco de Natividade (To), escapei de uma emboscada de pistoleiros na cidadezinha de Goianorte, atualmente município, chamado São Valério. Dom Celso Pereira, na época bispo de Porto Nacional, Dom Pedro Casaldaliga bispo da prelazia de São Felix do Araguaia e Dom Fernando, arcebispo de Goiânia pediram que eu me afastasse da região por certo tempo. Meus colegas Aristides Camio e Francisco Gouriou ainda estavam detidos em Brasília, acusados de organizar emboscadas com lavradores no baixo Araguaia. Nesse clima a própria embaixada francesa pediu insistentemente para que eu saísse do lugar. Já havia padres suficientes criando problemas nesse regime militar decadente.

Tinha chegado a Natividade em 80. Rapidamente, com frei Henrique Burin des Roziers (Op.) membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), iniciamos um trabalho de conscientização nas comunidades dos posseiros que povoavam a região. Vinham do sul compradores de terras, para criar grandes fazendas, que, muitas vezes, desconheciam a realidade fundiária da região. Para os cartórios era hora de aproveitar da oportunidade. Com a conivência de advogados, organizava-se a compra e venda de títulos falsificados de terras. Os posseiros eram pressionados e os jagunços se empenhavam em limpar a área. Mas as famílias, descobrindo seus direitos de posse, tentavam resistir. A história é conhecida. Além do meu trabalho clássico de pároco, eu mergulhava na defesa das comunidades ameaçadas de desaparecimento pela ação dos grileiros. Eu achava isso perfeitamente coerente.

Goianorte

Um domingo de novembro, eu saí de uma reunião de posseiros, animado com o advogado da Cpt, indo rezar a missa mensal em Goianorte, distante de 10 km. Subindo na Toyota, um lavrador que tinha escapado de um atentado a semana antes na sua roça, pediu carona. Os posseiros, uns dias antes, tinham derrubada uma cerca colocada por grileiros na suas propriedades. Essa ação insólita para a região provocou reações como se podia esperar. Alguns estavam vendo a mão do padre por trás desse fato. Meu amigo, que era líder do grupo, estava na mira dos jagunços e me avisou que depois dele viria a minha vez.

Chegando ao povoado, encontrei a irmã Sueli que tinha passado a noite no local. Ela estava muito nervosa, pois tinha ouvido fofocas de ameaças de morte contra mim. Depois da missa, meu companheiro me avisou que os homens que tentaram matá-lo estavam no local. Acompanhados de amigos gaúchos fomos almoçar na casa do responsável da comunidade, pequeno fazendeiro recém chegado. Por sorte ou falta de sorte, meu lavrador ficou no boteco do lado. No meio da refeição ouvimos tiros, sai para ver e de fato meu amigo lavrador corria fugindo de dois pistoleiros que tentavam matá-lo!

Enquanto ele almoçava, um jagunço chegou, tentando atirar nele, mas ele, mais rápido, matou o jagunço. Os outros dois pistoleiros, filhos do morto, chegaram e viram que o resultado tinha sido o contrário do esperado. Rápido, ele saiu correndo para fora e, mesmo ferido pelos tiros, escapou. Agora, era minha vez! Os dois furiosos, imaginando que o cenário tinha sido planejado por mim, gritaram: - agora é a vez do padre.

Mas Deus tinha colocado a irmã Sueli no meu caminho. Ela me empurrou para dentro da casa, o dono trancou as portas, fez sair toda a família e acampou armado na frente da sua casa. Eu fiquei dentro sem poder sair, pois os pistoleiros vigiavam na frente. Furaram os quatro pneus da Toyota e prometeram que eu não ia sair vivo! Onze horas depois a polícia chegou e me levou para Natividade.

Deixei Natividade o dia seguinte, voltei um mês depois de noite, com meu amigo Sandoval para recuperar minha biblioteca e alguns objetos. Passei um ano depois, às escondidas, na casa da Dona Didi e foi me hospedar no casal amigo Donzinho e Zeferina. Nunca mais voltei e nunca o povo foi informado da verdadeira razão da minha saída, salvo os grupos de posseiros mais conscientes, como a comunidade do Riachão que preferiu me ver fora do que morto [1].

Xingu

Em março de 1984 cheguei à prelazia do Xingu. Por causa de atoleiros assustadores, deixei a Toyota com a mudança em Marabá (a 500 km de Altamira). Fui até Belém onde encontrei meu amigo Miguel Le Moal, responsável da Cpt para a Transamazônica e fomos juntos de avião até Altamira. Dom Erwin me acolheu. Devia ficar um ano, fiquei vinte. Comecei uma nova vida. Encontrei a Igreja dos meus sonhos e faço questão de voltar lá todos os anos.

Após quatro anos em Paris, a serviço dos padres estudantes asiáticos, voltei para o Brasil. Não para o Pará, mas para o Maranhão. Leciono exegese bíblica no IESMA [2] e assumo paróquia imensa na periferia de São Luis pelo menos até dezembro 2009. No mês de março, recebi um recado emocionante via e-mail: foi o início da historia que eu quero contar agora.

O reencontro com as crianças de Pindorama

Magali perdeu a mãe, Florentina, em outubro 2008. O pai já tinha falecido quando ela era muito pequena. Da infância feliz sobrava a imagem remota do Pe. Chico, tão amigo da mãe.

Será que esse padre ainda vive e aonde é que anda? – se perguntava ela. Criou coragem e decidiu retomar contato comigo. Bastava de fato bater na porta dos doutores Eduardo e Eloisa, que moravam em Porto Nacional e de quem eu não tinha perdido contato. Foi lá, dr. Eduardo tinha recebido um e-mail meu nesse dia!

Lembrava-me muito bem dessas crianças que esperavam minha chegada na praça da igreja de Pindorama com flores. Descia da Toyota, pegava o violão e cantava com elas, depois vinha o passeio de Toyota nas ruas da cidade. Pe. Chico virou uma lenda para elas, um verdadeiro papai Noel. Foram três anos excecionais. A saída não teve nem despedida nem explicação e nunca mais teve oportunidade encontrá-las. Devia, por segurança, ficar longe e incomunicável.

Pensava que com o tempo a saudade ia desaparecer. Agora Magali, casada, mãe de dois filhos, professora num grande colégio da capital, Palmas, desencadeava um processo de memória ao qual não podia escapar. Respondi à mensagem na hora. Foi uma explosão de alegria. Suas irmãs Monica e Ivana e seu irmão Robledo espalharam a noticia.

Pindorama que eu tanto amava sabia que eu existia ainda, vivo no Brasil. Havia 26 anos que tinha saído e os três anos passados lá viravam experiência fundadora e mítica. Queria entender a razão que me empurrava a rever toda essa gente que, incrivelmente, ainda se lembrava do padre Chico e do seu violão. Sentia o dever de voltar, ansioso por descobrir em que caminhos eles andavam, o que tinha acontecido com essa criançada tão querida?

Deixei minha paróquia de São Luis e, no início de julho, foi lá. Desembarquei sexta feira, 3 de julho, em Palmas com 35 °. Calor seco, mas tão gostoso. Minha dor de coluna permanente, sumiu. Estava lá, para me acolher, meu grande amigo o doutor Eduardo que uns dias antes foi homenageado na câmara federal de Brasília. A ong Comsaude, que ele ajudou a criar com Eloisa sua esposa, festejava 40 anos de fundação. [3]

Quando cheguei à região toda a equipe da Comsaude tinha sido um farol. Ela tinha uma experiência pioneira na região que congregava várias forças sem ser ligada a uma Igreja determinada ou a um partido político. Isso lhe dava mais agilidade e liberdade de ação. Nada de assistencialismo, mas uma visão global do desenvolvimento que toma conta de todos os aspectos: saúde preventiva, promoção humana através de artesanato, arte, teatro e música. Dimensão sócio-política com aprendizagem de trabalho comunitário. Respeito da liberdade de consciência e abertura ao ecumenismo. Vi raramente no Brasil um trabalho tão coerente e respeitoso dos pobres.

Eduardo e Eloisa foram muitas vezes perseguidos por serem médicos honestos e comprometidos com a conscientização dos pobres. Para eles o pobre é protagonista e ator da sua própria historia. Nunca mudaram de linha e de opção. Viver com eles é sempre um tempo de graça. Eles têm 4 filhos. Pude encontrar : Eduardo filho, arquiteto a quem Uruará deve a beleza da sua Igreja e Placas também, em parte, e Álvaro procurador federal da república em Palmas. Conheci-os adolescentes, agora eles têm um papel importante na sociedade continuando a trilha dos pais. Alegria de encontrar Rosileide, uma das meninas, agora na equipe de direção da Comsaúde, e também animadora da sua comunidade.

Fiquei alguns dias na casa de Eduardo e Eloisa podendo rever vários amigos e mergulhar nesse ambiente de meu primeiro Brasil. Os casais Manzano e Lotufo [4] foram meus primeiros amigos quando cheguei em 1980. Apesar das distâncias no tempo e no espaço sempre ficamos ligados e as afinidades continuam. Encontrá-los é sempre fazer experiência de humanidade.

Pindorama

Na terça feira 7 de julho, no pequeno gol de Ivana, saímos para a nossa peregrinação para Pindorama. Para as três filhas de Florentina era uma volta à infância feliz. Na viajem de 180 km de estrada em parte de chão, atravessando as paisagens do sertão. Contemplando o horizonte traçado pelas linhas suaves das serras verdes e azuis, vivia de novo as minhas andanças. Num fim do ano de 1979, depois do Natal, voltando de ônibus mais do que cheio, violão na mão, mochila nas costas, foram 11 horas de pé para chegar até Porto Nacional. Desta vez, fizemos o percurso em duas horas e pouco!

Pindorama era minha terra prometida. Nesta segunda cidade da paróquia, eu ficava uma semana por mês. Parecia férias, pois o trabalho se tornava sempre agradável. Florentina era diretora do colégio e animadora da comunidade. Não fazia nada sem combinar com ela que tinha muito jeito para organizar as crianças e motivar a participação dos adultos. Nada se tornava problema, tudo tinha solução. Jovens e crianças eram prioridade dando muita vida às nossas celebrações e eu, também jovem, aguentava o ritmo.

Como não tinha grupos de fazendeiros, não havia conflitos de terra. Porém, não faltavam adversários políticos ligados ao regime militar que tentavam desacreditar o trabalho da Igreja. Naquela época, noviço ainda, participei ativamente da campanha para prefeito do Alemão. Ganhou, com folga. Na época era presidente da comunidade e iniciou a construção da igreja. Quando fui ameaçado, foi o único político que me acompanhou para me defender e deu entrevista a meu favor.

Infelizmente morreu de câncer alguns anos antes da Florentina. Ia para Pindorama sabendo que não encontraria mais esses dois pilares do nosso trabalho religioso e social [5]. 26 anos depois, chegar com as filhas da Florentina não era pouca coisa!

Chegando a Pindorama, senti a profundo alegria de ser missionário. Quando li as faixas de boas vindas, que vi as crianças na entrada da casa de Leilane e Arquimedo, com flores e cantando, as ex-meninas que se lembravam de mim, tomei consciência num instante da importância de ter sido, pela graça de Deus, um bom catequista, um pastor alegre que tocava violão e brincava com as crianças. Senti fortemente o peso da responsabilidade que nós, padres e educadores, temos em orientar a vida de tantas pessoas. Lembrava-me as palavras de Jesus em Mateus : quem escandalizar um desses pequeninos... (Mt 18, 6).

Nessa época nem sabia falar direito o português e estava com pouca experiência pastoral. Quem me aconselhava, era Florentina, a Irmã Sueli, ausentes fisicamente, mas presentes nessa hora. Podia ver nos olhos dos presentes o amor dos ausentes. Tinha ficado somente três anos como podiam se lembrar tanto do Chico?

Agora, estava com eles. Pediram-me para tocar violão, pois não podiam imaginar o Chico sem violão. Apesar de não mais tocar há anos, tive que cantar e pular na simplicidade dos filhos de Deus que não recusam o convite. Brinquei de corrida na praça da igreja com os pequenos e ganhei, claro como sempre numa distância razoável. Sejamos simples como crianças.

A lembrança do padre simpático é uma coisa, porém o que me chamou mais atenção foi como eles continuaram fieis à mensagem recebida décadas atrás! Essa sensação ficou mais evidente quando o recado veio simplesmente, sem avisar. Elba, agora diretora do colégio, no fim da missa, na noite da quarta feira, numa igreja cheia, lembrou que ensinava muitos cantos. Tinha escolhido um deles no velho livro ainda guardado! O canto segundo seu comentário traduzia a mensagem que, criança, ela guardou do padre. O canto dizia:

nossa alegria é saber que um dia todo esse povo se libertará pois Jesus Cristo é o Senhor do mundo nossa esperança realizará. Jesus manda libertar os pobres e ser cristão e ser libertador, nascemos livres para crescer na vida nem pra ser pobre e nem viver na dor.

Na memória das crianças não era só o padre brincalhão, era também aquele que lutava por mais justiça. Elas não tinham esquecido a mensagem libertadora que eu queria transmitir e pelo qual fui perseguido. Elas ficaram marcadas com a minha saída, chocadas de certa maneira, mas agora adultas, elas podiam expressar seus sentimentos. A sementinha não tinha caída em vão. Sempre pensei que a liturgia é o lugar privilegiado do anúncio. Tinha mais uma prova. Cantos das Cebs permitem uma boa conscientização.

Foram três dias de encontros e os que pensavam que eu já tinham morrido às vezes choravam de emoção. Visitei uns que passaram para outras confissões, esquecendo o parêntese da minha saída, me acolheram com muito carinho: não quis perguntar as razões dessa mudança!

Muitas coisas mudaram. Nunca senti tantas muriçocas que acompanham sempre o desenvolvimento insustentável! A corrupção e a dominação dos mesmos clãs privilegiados parecem continuar 26 anos depois. Precisaria pesquisar quem foi obrigado a exilar-se para ter uma noção mais correta da distribuição do crescimento.

Porém, fui lá com o único objetivo de rever os amigos desse passado tão querido. Considero como uma grande graça ter um retorno tão significativo vinte e seis anos depois! Nunca se sabe exatamente quem planta e quem rega? Florentina plantou, Chico regou, mas era Deus quem fazia crescer (1 Cor 3, 6). A terra era boa e deu frutos. Não considerei o que vi, nesses dias, como se fosse o resultado do meu empenho passado, pois trabalhava pouco e brincava muito ao final! Confesso, com muitas satisfações, que me senti feliz de ser padre, cercado de tantos amigos, alegria incomunicável. De repente, tive a sensação que num momento e num lugar determinados, Deus estava operando. Ele mudou ainda meu caminho para realizar seu plano! Precisava estar lá e deixá-lo agir. Agora ele me permitia ver o resultado, fantástico! Não se semeou em vão.

Era uma ilustração viva da teologia da Palavra que comento nas aulas quando lemos 1Ts 1, 4-8: A palavra de Deus foi anunciada, acolhida e deu fruto. A comunidade se tornou modelo e seu exemplo se espalhou por toda a redondeza.

Tinha em mente a belíssima carta de Leilane recebida em abril:

Eu sou Leilane, uma daquelas crianças que ficava aguardando sua chegada em Pindorama com flores, cantava e dançava João Pequeno dança, passeava na Toyota do Padre. Não sei se ainda lembra-se das nove irmãs, eu sou uma delas, neta da Alzira de Natividade. Já faz muito tempo. Apesar do tempo, não esqueci do Pe. que animava e evangelizava as crianças com tanto carinho. Graça há esse tempo, aprendi a amar a Igreja Católica. E sou Católica com muito orgulho”.

Sei que ficaram mais animados com essa visita dos 26! O Chico não tinha morrido nem fisicamente nem espiritualmente. Constataram que eu pregava o mesmo Cristo que antes, que meu amor para a Igreja e o povo não tinha mudado. Esse reencontro foi como se a gente se repassasse as energias mutuamente. Fortalecemos a nossa fé celebrando de novo e enxertamos de rebentos novos as nossas velhas amizades.

Natividade

Na sexta feira 10 de julho, com Ivana e sua família fomos para Natividade. Amei Natividade, diferentemente de Pindorama. Nessa cidade não tinha, na época, só amigos. Como ia ser 26 anos depois? Queria rever, em primeiro lugar, Dona Didi, agora paralítica e fazer uma visita à comunidade exemplar de Riachão-Brevidade.

Dona Didi

Chegamos a Natividade ao pôr do sol e fomos logo para casa da Dona Didi. Esperavam lá, entre outros, Domingos Santana, amigo dos mais fiéis, articulador da comunidade de Brevidade. Rever Dona Didi era uma recompensa. Precisaria escrever muito sobre essa mulher. Sua expressão religiosa aparentemente tradicional esconde mal uma visão profética que se enraíza na essência revolucionária do magnificat. Sua fé nunca se desligou da realidade e sempre se expressou numa caridade incansável. Quem procura o caminho da verdade pode passar na sua casa e terá a resposta não teórica, mas ética. Mesma adoentada ou sofrendo, ela continua acolhendo. Sua sabedoria discerne na hora a vontade de Deus. Não precisou fazer ciências religiosas.

Na época, deixava a matriz para o Pe. Faustino, antigo pároco, e ia rezar missas na periferia da cidade; Dona Didi era minha guia. As crianças vinham em peso, pois brincávamos ao luar, cantando e pulando. As mulheres da vida moravam lá e participavam com seus filhos. Nascia outra Igreja com os excluídos da sociedade e da Igreja. Muitos não se sentiam bem na igreja dos coronéis e os negros deviam sentar atrás. Didi sempre me encorajava a continuar e me ajudava com seus conselhos de mulher experimentada e conhecedora da realidade. Ela era catequista e animava vários grupos de oração. Com ela criamos algumas comunidades. Belarmino e sua esposa, casal bem negro, que animava uma das comunidades me contou como ele não achou mais espaço dentro da Igreja.

Quando sai, Dona Didi me defendeu com muita garra, acolheu o povo do Riachão ameaçado, hospedou os advogados da Cpt e, apesar das críticas e perseguições, nunca esqueceu a opção pelos pobres. Ela provou que a luz de Deus não se apaga. Com um pequeno sorriso ela me disse: um dia a verdade vence. Estou aqui, não dá de falar mas escuto e vejo tudo.

A minha visita, após 25 anos, era nossa vitória.

Em maio 2009, ela completou 80 anos. Seu filho, padre Osmão e mais três outros padres vieram de longe celebrar na sua casa e, por incrível que pareça, o pároco de Natividade não se fez presente na hora: tinha missa na Chapada as 5 km! No domingo celebrarei na casa dela com uma parte da sua família e dos amigos, um dos quais Odo [6] e esposa, sempre muito ligados a dona Didi.

Após saudar dona Didi, fui visitar umas dez famílias com Domingos e Nivaldina que na época cuidava da minha casa. A saudade era forte demais. Passei na Zeferina, viúva do Donzinho que era nosso melhor pedreiro e que iniciou a reforma da Matriz, agora tombada. [7] Passei na Dona Ilda, lugar da nossa horta comunitária. O tempo foi curto demais para poder aparecer de surpresa em todos os lares.

Descobrindo que Nivaldina era agora evangélica, quis saber por quê. Ela me confessou: Padre, quando o senhor saiu, nós os pobres fomos abandonados. Nossa saída foi procurar um pastor.

Evidentemente deve ter tido outras razões, mas o abandono da opção pelos pobres, interpretada equivocadamente como linha política e não pastoral, não pode ser desprezada, pois teve conseqüências nefastas. Pensei: ainda bem que escapei da morte. Talvez tivesse feito de mim um herói por acidente. Ao final, pagar tão caro por tal resultado vale a pena? Melhor estar vivo e poder continuar o trabalho.

Domingos

No sábado, com Domingos, fomos para Riachão, comunidade exemplar, segundo o frei Henrique que a conhecia bem e lhe dava o nome de ceb autêntica. Ela foi assediada com propostas de compra de terra, perseguida pelos políticos locais, fazendeiros e jagunços e, pior, abandonada pela própria paróquia. Em respostas às acusações de serem manobrados por padres comunistas, eles fundaram, com muitos sacrifícios, não somente o sindicato dos trabalhadores rurais [8], mas também o P.T e uma associação tipo cooperativa.

Domingos me contou todas as ameaças que ele sofreu, como várias vezes escapou da morte e de jagunços que organizaram emboscada contra ele. Ele ficou viúvo, teve que assumir sozinho a educação dos filhos, continuando a animar a comunidade e a carregar a preocupação de todos. Liderança incontestável, o pastor da Assembléia foi várias vezes lhe fazer propostas sedutoras para melhorar sua vida. Sempre ele recusou: mudar de Igreja nunca! Contando todas essas peripécias, ele dava uma boa risada franca, própria do trabalhador que perante a desgraça tem somente o bom humor como defesa, contra o desespero. Estava na presença de alguém fora do comum. Quem era eu? Um simples padre e ele um herói que nunca teve espaço na mídia para contar sua historia. Ele o verdadeiro herói, não por acidente, mas por ter resistido anos após anos sem cair na tentação de abandonar a luta. Domingos tem somente uma bicicleta para andar. Pensei que com a minha chegada ele tinha uns gastos, propus dar-lhe um pouco de dinheiro, recusou e deu a quantia para a comunidade! Que esse exemplo nos permita crer ainda na raça humana!

Riachão

Chegando a Riachão, encontramos homens e mulheres, cortando carne e preparando o almoço comunitário como naquela bela época. Pouco a pouco o Povo vinha chegando de longe, uns montados em jumentinho, outros de pé. Nada parecia ter mudado. Instalamos uma mesa debaixo das mangueiras para “celebrar a missa”. Demorou um pouco, pois a informação chegara meio distorcida nesse lugar afastado, sem energia, sem telefone e com estrada de chão. Perguntei:

- há quanto tempo que vocês não tiveram missa aqui?
- 26 anos – responderam com um resto de humor camponês que já viu coisas piores na vida.

Fiquei triste e senti vergonha da classe dos padres da qual faço parte, capazes de tal descuido. Como se pode abandonar um povo durante tantos anos!

Dois dias depois, encontrarei o bom Bispo de Porto-Nacional que certamente pensou que era um desses padres da Cpt que estava mais preocupado com a dimensão horizontal que vertical e que tinha semeado a luta no campo! Menos presença de Cpt resulta em menos conflitos do campo: assim raciocinavam alguns.

Quando dom Gusmão veio para Porto, de fato, encontrou uma situação bastante conflituosa e certamente sofreu por ser da linha carismática e isso o preparava pouco para continuar a luta de Dom Celso Pereira.

A Cpt só pensa na promoção social, o Cimi não quer evangelizar, as Cebs foram um fracasso e a pastoral de conjunto é utopia – me confessou o bispo numa conversa franca e fraterna. Se Riachão não fosse uma Ceb, o que teria sobrado? Sem a presença e o apoio do padre esse povo resistiu e esperou contra toda esperança. Prova que a nossa escolha não estava errada, pois deu frutos. O que teria dado se fosse aproveitado!

Reconhecemos que muitos agentes de pastoral não aceitaram a eclesiologia das Cebs que prioriza a Igreja povo de Deus. Tenho 20 anos de experiência na Transamazônica e aprendi que, numa paróquia de 80 comunidades, a única saída são as Cebs. Mas as Cebs não são um meio para suprir a escassez dos padres. Elas são o sinal dos tempos que nos indica novos rumos para ser Igreja. Querer voltar para um modelo que reforça o poder do padre é desprezar a ação do Espírito Santo que renova sua Igreja suscitando ministérios assumidos pelos leigos. Não achamos ainda um novo tipo de padre que se adapta a eclesiologia das Cebs. Pior ainda é formar os leigos como se fossem assistentes do padre. O centro é o Cristo ao redor de quem todos os ministérios devem articular-se ao serviço da Igreja local.

Saída

De lá, fui para Uruará dar um curso sobre Paulo para mais de 90 participantes, todos membros das Cebs. Visitei umas 10 comunidades e vi a importância de reafirmar a opção pelos pobres e o modelo das Cebs. Os evangélicos estão ganhando cada vez mais terreno, pois não param um minuto. Depois dessas viagens, posso adiantar uma hipótese: o avanço dos evangélicos é de fato moda que passará, produto que se vende bem melhor na praça do mercado religioso, proposta que acha a brecha em tempo de crise. Vejo como um perigo a tentação de imitar os evangélicos na sua proposta sedutora na qual basta gritar: Jesus eu te amo ou Jesus salva.

Desde Paulo nos sabemos que é Cristo o Senhor. A pobreza teológica deixa lugar para o emocional e o irracional. Porém, nós pastores temos que nos questionar: será que nosso estilo de vida testemunha uma paixão verdadeira para o anúncio de Cristo Jesus?

Quero me despedir de todos os amigos e amigas encontrados nessa passagem tão rápida. Não deixarei 26 anos para visitá-los de novo. Voltei mais forte na fé e na missão. Quero que a vida de todos vocês, lembrada nessa páginas, sejam compartilhada com os outros amigos do Brasil e de fora. Muitos, lendo essas linhas, descobrirão a riqueza do povo de Deus. Que seu testemunho transmita a profunda alegria que nós partilhamos. Não falei de todos que encontrei, deveria escrever um livro. Mas todos sabem que ninguém é esquecido.

Obrigado, Dona Didi, nossa matriarca, continue fiel indicando o rumo.

Obrigado, amiga Florentina, que do alto do céu com todos os que já foram, nos olha com ternura.

Obrigado todos vocês que me acolheram com tanto carinho nessa terra amada.

Continuamos firmes na fé.

Padre Chico, São Luis, 30 de agosto de 2009.

As opiniões expressas nos artigos e comentários são da exclusiva responsabilidade dos respectivos autores e não representam, necessariamente, as opiniões da redacção de AlterInfos ou de Dial. Comentarios injuriosos o insultantes serán borrados sin previo aviso.


[1Um processo será aberto acusando-me de ter sido o autor intelectual do crime. Era moda na época de perseguir a Igreja, tentando afastar seus agentes que lutavam a favor da reforma agrária. A Cpt regional se encarregou da minha defesa.

[2IESMA: é o Instituto de Estudos Superiores do Maranhão.

[4Marcos Lotufo, irmão de Eloisa, casada com Edit, alemão, eles faziam parte da equipe. Vivem em Goiânia agora. Sobre Marcos deveria escrever um livro.

[5Encontrarei, com muita alegria, o senhor Pascal que foi o vice do Alemão.

[6Ele é o melhor mecânico que eu conheço. Lembramos nossas andanças de noite no caminho acidentado da usina quando faltava luz na cidade. Só ele conseguia chegar até lá para consertar as turbinas. Aprendi com ele a cuidar da Toyota.

[7Bey, arquiteto em Brasília, mas de origem de Porto, foi nosso conselheiro para reformar as torres que ameaçavam cair.

[8A minha casa que eu tinha deixado para ser a sede do sindicato, lhes foi retirada pelo próprio pároco.

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