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BRASIL - Bolsonaro, a pandemia, o passado colonial e o cenário de 2022. Entrevista especial com Bernardo Ricupero
João Vitor Santos, IHU
sábado 23 de janeiro de 2021, postado por
21 de janeiro de 2021 - IHU - Professor usa o atual contexto da crise pandêmica para mostrar a relação do bolsonarismo com um passado ainda não resolvido e alerta que, a partir do que houve nos EUA, podemos ter problemas pós-eleições.
O Brasil nasce como uma colônia que é amplamente explorada, à base de trabalho escravo, para suprir as necessidades dos colonizadores europeus. Os tempos avançam mas, na gênese, ainda não superamos isso. É essa a perspectiva do professor Bernardo Ricupero. “Num sentido mais profundo, a escravidão também deixou uma marca forte no que somos. Em especial, parece-me que vem, em grande parte dela, a sensação de que aqui a vida humana não vale grande coisa”, analisa. Para ele, em certa medida, isso pode explicar algumas posições diante da crise pandêmica. “Não é difícil de perceber como a ação, ou melhor, a inação do governo e de alguns setores da sociedade, durante a pandemia, evidenciam a força dessa herança”, aponta, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo Ricupero, respostas como ‘e daí?’ do presidente diante de milhares de morte em decorrência da Covid-19 é o exemplo disso. “Sem falar no argumento de que o distanciamento social irá afetar a economia, o que, inevitavelmente, lembra o alerta de que a Abolição desorganizaria a lavoura”, acrescenta. E vai além: “iniciativas de garantir a vacinação de apenas alguns poucos, os capazes de pagar por ela, revelam que nem todos são considerados como iguais nessa República. Isso, para não falar, talvez da pior herança da escravidão: a incapacidade da sociedade de reagir”.
No entanto, Jair Bolsonaro não é só fruto da manifestação de um pensamento colonial e escravocrata. No caldeirão que resulta na sua personificação também está a ultradireita desses tempos e a adoração ao ícone dessa vertente política, Donald Trump. Mas, Ricupero adverte que “Trump e Bolsonaro têm tanto semelhanças como diferenças, o que não torna a comparação simples”. Enquanto o trumpismo tem relação estreita com a guinada à direita do Partido Republicano, “o bolsonarismo é muito mais recente e aparentemente menos assentado na história brasileira.”. “Diria que é basicamente o resultado do desmoronamento do governo Dilma Rousseff e do regime político instaurado com o fim da ditadura”, detalha. “Certas aspirações de setores que acabaram se identificando com o bolsonarismo foram bem sintetizados, nas manifestações contra Dilma, em 2016, nos infames cartazes: ‘quero meu país de volta’”, conclui.
Para compreender esse passado brasileiro, Ricupero traz autores tidos como grandes intérpretes, entre eles Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior. Só que ao invés se seguir esses, e até outros como Caetano Veloso, o professor sugere uma leitura crítica levando em conta o tempo dos autores e hermenêutica necessária ao nosso tempo. “Acho que podemos dar uma contribuição original ao mundo, desde que enfrentemos o que o nosso passado nos deixou. Ou, reelaborando a avaliação de Gandhi a respeito da civilização ocidental, a civilização brasileira ‘poderia ser uma boa ideia’”.
Por fim, deixa uma alerta: a depender do resultado das eleições de 2022, podemos ter uma déjà vu brasileiro do que houve recentemente nos Estados Unidos. “Bolsonaro já deixou claro que, como seu ídolo e inspirador, não aceitará os resultados das eleições de 2022, caso elas sejam contrárias aos seus interesses. No seu caso, coloca em dúvida, desde a eleição que venceu em 2018, a credibilidade do voto eletrônico”.
Bernardo Ricupero possui graduação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP, tendo realizado pós-doutorado pelo Colégio do México. É professor doutor da USP, trabalha com ênfase em História do Pensamento Político, atuando principalmente em temas como pensamento político brasileiro, pensamento político latino-americano, marxismo, nacionalismo e romantismo.
Confira a entrevista.
Em artigo publicado recentemente, o senhor afirma que a “escravidão estimulou no Brasil um desprezo pela vida humana que se evidencia hoje na maneira como se lida com a pandemia”. Gostaria que o senhor recuperasse essa ideia e apontasse possíveis caminhos para corrigir essa mácula histórica que segue viva.
Quis chamar a atenção para como a escravidão nos formou. Perceberam isso alguns de nossos melhores intérpretes, como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Antes deles, Joaquim Nabuco destacou como “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.
É preciso levar em conta que a história registrada de nosso país começa como a história de uma colônia, cujo objetivo primordial foi fornecer bens demandados pelo mercado europeu. O próprio nome “Brasil” vem – caso quase único entre as nações – de uma mercadoria, o “pau brasil”, hoje quase extinto. Tais considerações mercantis contribuíram para que não se desse grande importância à vida humana. Que, antes, contingentes de índios e, depois, de africanos fossem escravizados para trabalharem em nossos campos. Que ainda hoje operações de fiscalização encontrem trabalhadores em “situações análogas à escravidão”, muitas vezes, em propriedades do “moderno” agrobusiness. Num sentido mais profundo, a escravidão também deixou uma marca forte no que somos. Em especial, parece-me que vem, em grande parte dela, a sensação de que aqui a vida humana não vale grande coisa.
Contexto da pandemia
Não é difícil de perceber como a ação, ou melhor, a inação do governo e de alguns setores da sociedade, durante a pandemia, evidenciam a força dessa herança. Exemplos dela são atitudes, como a expressa na resposta de Bolsonaro ao repórter que lhe perguntou sobre as mortes causadas pelo coronavírus, quando se contentou em dizer: “e daí?”. Confirmam essa postura o desprezo e a sabotagem a medidas necessárias, como o distanciamento social e a vacinação.
Sem falar no argumento de que o distanciamento social irá afetar a economia, o que, inevitavelmente, lembra o alerta de que a Abolição desorganizaria a lavoura. Por sua vez, iniciativas de garantir a vacinação de apenas alguns poucos, os capazes de pagar por ela, revelam que nem todos são considerados como iguais nessa República. Isso, para não falar, talvez da pior herança da escravidão: a incapacidade da sociedade de reagir.
Diria, em poucas palavras, que o caminho que se procurou seguir, em sentido contrário a este, foi o de, pelo menos desde 1822, tentar criar uma nação. Pode-se considerar que tal projeto se tornou, há algum tempo, antiquado. No entanto, foi no sentido de procurar realizá-lo que se tomaram as principais iniciativas que se chocaram com o passado colonial. É verdade que medidas, como a Abolição, sempre foram insuficientes, não integrando plenamente os ex-escravos à vida nacional. Mais recentemente, a Constituição de 1988 procurou criar um arremedo de Estado de bem-estar-social. Não por acaso, tudo isso está sob ataque desde 2016.
Nesse mesmo artigo, o senhor destaca interpretações sobre o Brasil de nomes como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e mesmo Caetano Veloso. Quais seriam os equívocos dessas interpretações que hoje ainda nos inebriam para uma compreensão plena sobre o Brasil? E que interpretações o senhor ainda considera potentes em nosso tempo?
Essas chamadas “interpretações do Brasil” têm, a meu ver, o grande mérito de realizarem análises totalizantes a respeito do país; costume que, em boa medida, se perdeu com o desenvolvimento da universidade. Por outro lado, os trabalhos ditos científicos não deixam de se alimentarem de hipóteses formuladas anteriormente, em especial, em momentos de crise – o que tem algo a nos dizer – como os anos 1920 e 1930. Isso ocorre quando se trata da “família patriarcal”, da “democracia racial”, do “mito da democracia racial”, do “sentido da colonização”, do “patrimonialismo”, etc. Também me parece significativo que se possa identificar por trás da obra de muitos artistas – dos românticos à Tropicália, passando pelos modernistas – “interpretações do Brasil” num sentido lato.
Freyre e Caetano
Sustentam elas diferentes “visões de mundo”, ou melhor, “visões do Brasil”; mais conservadoras, liberais, democráticas, socialistas, etc. No caso, chama-me particularmente a atenção como, há algum tempo, tem-se destacado “interpretações do Brasil”, como as de Gilberto Freyre e Caetano Veloso, mais positivas a respeito de nossa experiência.
Elas sugerem, em especial, que haveria a potencialidade de se criar aqui algo como uma “civilização”. No entanto, parece-me que nelas falta uma visão mais crítica a respeito da história e da sociedade brasileira, como a que se pode encontrar, por exemplo, em Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Tal perspectiva chama a atenção, por sua vez, sobretudo para o peso do passado colonial do Brasil, legado que ainda temos dificuldade de superar. Acredito que essa omissão se faz sentir em não estarmos adequadamente equipados para lidar com o que chamei, num outro artigo, da verdadeira “destruição do Brasil” que estamos vivendo desde, pelo menos, 2016.
Civilização brasileira? Uma boa ideia
Mesmo assim, não me parece que as duas visões – mais positiva e mais negativa a respeito da experiência brasileira – são necessariamente incompatíveis. Ou melhor, acho que podemos dar uma contribuição original ao mundo, desde que enfrentemos o que o nosso passado nos deixou. Ou, reelaborando a avaliação de Gandhi a respeito da civilização ocidental, a civilização brasileira “poderia ser uma boa ideia”.
Sobre os Estados Unidos, a derrota de Trump nas eleições significa a derrota do trumpismo? E como tem observado os movimentos do bolsonarimso desde o resultado das eleições norte-americanas, ainda tendo em vista 2022? Levando em conta as diferenças e os caminhos percorridos pela próprio história dos dois países, o que une trumpismo e bolsonarismo?
Trump perdeu as eleições, mas elas também mostraram que o chamado trumpismo é forte. Ele teve mais de 74 milhões de votos, perto de 47% do voto popular e 7 milhões de eleitores a mais do que em 2016. Mais recentemente, o “assalto ao Capitólio” criou uma situação difícil na relação do ainda presidente com o establishment ou, ao menos, parte do establishment republicano. Não se pode esquecer que apesar de ter sido eleito como outsider, com apelo especialmente para a classe trabalhadora branca, governou como os republicanos tradicionalmente fazem, cortando impostos para os ricos e nomeando juízes conservadores para os diferentes níveis do judiciário.
No entanto, ao não aceitar os resultados das eleições e, especialmente, ao estimular seus seguidores a agirem violentamente o ex-apresentador de O Aprendiz passou a ser um problema. Sinal disso foi o apelo da National Association of Manufacturers, entidade industrial dos EUA, para que o vice-presidente Mike Pence usasse a 25ª emenda a fim de afastá-lo da presidência.
Ou seja, acontecimentos recentes mostram que o trumpismo é um movimento forte, que possivelmente pode ter uma existência fora do Partido Republicano. Por outro lado, Trump, diferente de líderes de outros movimentos com o qual o seu é aparentado, como o fascismo de Mussolini e de Hitler, não tem grandes convicções, a não ser defender seus interesses pessoais. Consequentemente, talvez não seja tão difícil substitui-lo como líder, o que poderia criar uma espécie de trumpismo sem Trump, mas ainda alojado no Partido Republicano. Seria preciso conseguir alguém capaz de expressar o ressentimento de um setor numeroso da população: brancos empobrecidos, muitas vezes, abertamente racistas.
Trump e Bolsonaro
Trump e Bolsonaro têm tanto semelhanças como diferenças, o que não torna a comparação simples. Ambos foram candidatos que se apresentaram originalmente com um discurso anti-establishment e que diziam ter a intenção de romper com o sistema (político) existente. Não é possível, entretanto, encontrar correspondência na relação que Trump acabou desenvolvendo com um dos pilares desse sistema, o Partido Republicano, na relação de Bolsonaro com qualquer componente de sua base, seja ele uma instituição como as Forças Armadas ou um grupo sempre disposto a apoiar o governo, qualquer que ele seja, como o Centrão. É verdade que o mandatário brasileiro também acabou estabelecendo uma espécie de casamento de convivência com o chamado mercado. Se este retirar seu apoio sua situação, assim como a de seu ídolo e inspirador, se complica.
Em termos mais superficiais, Bolsonaro inspirou-se explicitamente em Trump, ao ponto, de maneira ridícula, chegar a bater continência para a bandeira dos EUA. Por outro lado, o trumpismo está baseado numa direitização do Partido Republicano e do próprio país, que tem marcos importantes na eleição de Reagan, em 1980, na candidatura de Goldwater, em 1964, e que se inicia no segundo pós-guerra. Em comparação, o bolsonarismo é muito mais recente e aparentemente menos assentado na história brasileira. Diria que é basicamente o resultado do desmoronamento do governo Dilma Rousseff e do regime político instaurado com o fim da ditadura.
No entanto, procurei indicar anteriormente que ele expressa nossa história excludente, em particular, uma orientação com raízes na colônia. Certas aspirações de setores que acabaram se identificando com o bolsonarismo foram bem sintetizados, nas manifestações contra Dilma, em 2016, nos infames cartazes: “quero meu país de volta”. É verdade que também o trumpismo é, em boa medida, o resultado da história dos EUA. Com ele aparece o incômodo e a insegurança de muitos dos que sempre mandaram no país; em especial, homens brancos. Por sinal, o gênero me parece ser um componente igualmente importante no bolsonarismo, com o apoio ao capitão reformado sendo bem maior entre homens do que mulheres.
Por fim, Bolsonaro já deixou claro que, como seu ídolo e inspirador, não aceitará os resultados das eleições de 2022, caso elas sejam contrárias aos seus interesses. No seu caso, coloca em dúvida, desde a eleição que venceu em 2018, a credibilidade do voto eletronico.